"Sempre me encomendam textos ou palestras com o título "A Importância da Arte na Escola". Para os que trabalham com arte é tão óbvia a importância da arte na vida e, portanto, em qualquer forma de institucionalização da vida, como a escola, que fico tentada a dizer apenas: Se a arte não fosse importante não existiria desde o tempo das cavernas, resistindo a todas as tentativas de menosprezo.
Entretanto, para escapar à acusação de simplismo que esta resposta poderia provocar, vamos pensar na necessidade da arte em duas etapas fundamentais do ser humano em sociedade: o momento de sua alfabetização e a adolescência.
Não se alfabetiza fazendo apenas as crianças juntarem as letras.
Há uma alfabetização cultural sem a qual a letra pouco significa.
A leitura social, cultural e estética do meio ambiente vai dar sentido ao mundo da leitura verbal.
As artes plásticas também desenvolvem a discriminação visual, que é essencial ao processo de alfabetização. Para uma criança de seis anos as palavras lata e bola são muito semelhantes porque têm a mesma configuração gestáltica, isto é, uma letra alta, uma baixa, seguida de outra alta e mais uma baixa. Só uma visualidade ativa pode, nesta idade, diferenciar as duas palavras pelo seu aspecto visual e esta capacidade de diferenciação visual é básica para a apreensão do código verbal que também é visual.
Aprende-se a palavra visualizando. Outra importante função da arte é a complementação da comunicação entre professor-aluno. (...) A representação plástica visual muito ajuda a comunicação verbal, que é restrita a umas setenta palavras para uma criança de seis anos.
Para a demonstração da necessidade da arte na adolescência prefiro recorrer a textos com os quais me identifico. Em primeiro lugar, Octavio Paz diz no Labirinto da Solidão:
A todos, em algum momento, se nos revelou nossa existência como algo particular, intransferível e precioso. Quase sempre esta revelação se situa na adolescência. O descobrimento de nós mesmos se manifesta como um saber - nós sós; entre o mundo e nós se abre uma impalpável, transparente muralha: a de nossa consciência. É certo que basta nascermos para nos sentirmos sós; mas as crianças e os adultos podem transcender sua solidão e esquecer-se de si mesmos através do jogo ou trabalho. Por outro lado, o adolescente, vacilante entre a infância e a juventude, fica suspenso um instante ante a infinita riqueza do mundo. O adolescente se assombra de ser. E ao pasmo sucede a reflexão: inclinado sobre o rio de sua Consciência pergunta se este rosto, que aflora lentamente do fundo deformado pela água, é o seu. A singularidade de ser - mera sensação na criança - se transforma em problema e pergunta, em consciência interrogante.
Regina Machado comenta este texto de Octavio Paz:
Que possibilidade o nosso sistema educacional oferece ao adolescente de exercer uma consciência interrogante? Acho desnecessário responder a esta questão, todos sabemos o quanto uma criança, desde mais ou menos sete anos está "formada" pelos padrões da lógica do certo e do errado, o quanto suas possibilidades de perguntar sobre o que pode ser estão enquandradas em regras pre-estabelecidas. Daí para a frente ela busca sempre acertar, guiando-se pelo que "parece estar de acordo" com o mundo adulto, pelas exigências exteriores do "vencer na vida". O momento da adolescência me parece crucial como oportunidade para que a escola preencha de significação esta revelação da existência como algo particular, intransferível de que fala Octavio Paz. É preciso que o adolescente tenha a possibilidade de se apoderar do ser único que ele é, das suas aptidões, sonhos, angústias e indagações; penso que isto ele pode conseguir se puder EXPRESSAR ou construir, de forma significativa, a reflexão sobre seu "assombrar-se de ser". É preciso ter espaço e condições que permitam, se eu tenho quinze anos, confrontar-me com quem eu sou enquanto individualidade, no momento em que eu a descubro como minha. Além da voz, que me diz o tempo todo como eu devo ser, como devo vestir-me, comportar-me, o que devo dizer, o que devo escolher, é preciso que me seja permitido escutar uma outra voz que pergunta dentro de mim o que eu PODERIA ou GOSTARIA de ser. É preciso enfim que eu possa IMAGINAR. Quero dizer, imaginar não no sentido pejorativo que esta palavra tem cada vez mais na nossa sociedade, ou seja, o de produzir ilusões, fantasias, "gostaria de ser uma princesa" etc. Mas falo da função primordial da imaginação, que é a de possibilitar ao indivíduo perguntar-se sobre o que pode ser, livre das amarras do certo e do errado, para que aquilo que é real seja significativo para quem pergunta. O real deixa de ser rígido, preestabelecido para sempre e passa a ser algo que possa olhar de vários ângulos para encontrar a melhor forma de compreendê-lo.
(...) Acredito que a arte tem, de fato, uma função específica nesta fase da vida do indivíduo, em que ele deixou de ser criança, em que se vê como consciência interrogante e ainda não é adulto. Comecei falando da Imaginação porque ela é indissociável da atividade artística, uma não existe sem a outra. A princípio considerei a imaginção como potencialidade humana fundamental para qualquer idade ou atividade; não existe pensamento genuíno sem imaginação. Todos os relatos dos grandes cientistas, como por exemplo Poincaré ou Einstein, falando de seu trabalho, mostram o quanto a imaginação e a intuição estão na base de qualquer investigação científica. Para chegar a uma verdade nova, que contribua para o avanço da ciência, o investigador precisa arriscar, perguntar, transgredir o que já está dado como certo, como logicamente possível.
Se passamos pelo plano dos cientistas, pequena parcelada humanidade, para todos os outros seres humanos, o fenômeno é o mesmo. Um adulto equilibrado, que seja capaz de resolver satisfatoriamente os problemas que a vida lhe apresenta, necessita não apenas do pensamento lógico, mas também da intuição e da imaginação.
Regina Machado nos dá, no texto acima, as razões poéticas e cognitivas da arte na educação do adolescente, e quero lembrar também que não menos importantes são as razões catárticas e emocionais que incluem a saúde mental e o desenvolvimento do processo criador.
Como estas justificativas da arte na educação têm sido exaustivamente defendidas pelos arte-educadores, prefiro me referir às razões pragmáticas da arte na escola para os adolescentes e pré-adolescentes.
A adolescência é o momento de se testar pré-profissionalmente, é quando o jovem começa a se interrogar que carreira seguir ou, mais imediatamente, que vestibular fazer.
Mais de 25% das profissões neste país estão ligadas direta ou indiretamente às artes, e, seu melhor desempenho depende do conhecimento de arte que o indivíduo tem. O contato com a arte é essencial para várias profissões ligadas à propaganda, às editoras, na publicação de livros e revistas, à indústria dos discos e fitas cassetes. Não conheço nenhum bom designer de publicidade que desconheça a produção contemporânea das artes plásticas, como não conheço nenhum bom programador visual de editora que não conheça a produção gráfica da Bauhaus, nem bons profissionais que trabalham em gravadoras que não conheçam música para melhor julgar a qualidade do som que estão gravando.
O que a arte na escola principalmente pretende é formar o conhecedor, fruidor, decodificador da obra de arte. Uma sociedade só é artisticamente desenvolvida quando ao lado de uma produção artística de alta qualidade há também uma alta capacidade de entendimento desta produção pelo público.
É paradoxal que ao mesmo tempo em que a sociedade moderna coloca na hierarquia cultural a arte como uma das mais altas realizações do ser humano, construindo "verdadeiros palácios que chamamos museus para expor os frutos da produção artística e construindo salas de concerto para atingir as mais altas experiências estéticas a que podemos chegar através da música", despreza a arte na escola (Eisner, 1985, p. 5) .
Reconhecemos que a arte representa a apoteose cultural de uma sociedade, mas reservamos um espaço bem pequeno para ela na escola.
Por quê?"
Este texto é de autoria de Ana Mae Barbosa, páginas 27, 28, 29, 30, 31 e 32, em:
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 2008.
A todos, em algum momento, se nos revelou nossa existência como algo particular, intransferível e precioso. Quase sempre esta revelação se situa na adolescência. O descobrimento de nós mesmos se manifesta como um saber - nós sós; entre o mundo e nós se abre uma impalpável, transparente muralha: a de nossa consciência. É certo que basta nascermos para nos sentirmos sós; mas as crianças e os adultos podem transcender sua solidão e esquecer-se de si mesmos através do jogo ou trabalho. Por outro lado, o adolescente, vacilante entre a infância e a juventude, fica suspenso um instante ante a infinita riqueza do mundo. O adolescente se assombra de ser. E ao pasmo sucede a reflexão: inclinado sobre o rio de sua Consciência pergunta se este rosto, que aflora lentamente do fundo deformado pela água, é o seu. A singularidade de ser - mera sensação na criança - se transforma em problema e pergunta, em consciência interrogante.
Regina Machado comenta este texto de Octavio Paz:
Que possibilidade o nosso sistema educacional oferece ao adolescente de exercer uma consciência interrogante? Acho desnecessário responder a esta questão, todos sabemos o quanto uma criança, desde mais ou menos sete anos está "formada" pelos padrões da lógica do certo e do errado, o quanto suas possibilidades de perguntar sobre o que pode ser estão enquandradas em regras pre-estabelecidas. Daí para a frente ela busca sempre acertar, guiando-se pelo que "parece estar de acordo" com o mundo adulto, pelas exigências exteriores do "vencer na vida". O momento da adolescência me parece crucial como oportunidade para que a escola preencha de significação esta revelação da existência como algo particular, intransferível de que fala Octavio Paz. É preciso que o adolescente tenha a possibilidade de se apoderar do ser único que ele é, das suas aptidões, sonhos, angústias e indagações; penso que isto ele pode conseguir se puder EXPRESSAR ou construir, de forma significativa, a reflexão sobre seu "assombrar-se de ser". É preciso ter espaço e condições que permitam, se eu tenho quinze anos, confrontar-me com quem eu sou enquanto individualidade, no momento em que eu a descubro como minha. Além da voz, que me diz o tempo todo como eu devo ser, como devo vestir-me, comportar-me, o que devo dizer, o que devo escolher, é preciso que me seja permitido escutar uma outra voz que pergunta dentro de mim o que eu PODERIA ou GOSTARIA de ser. É preciso enfim que eu possa IMAGINAR. Quero dizer, imaginar não no sentido pejorativo que esta palavra tem cada vez mais na nossa sociedade, ou seja, o de produzir ilusões, fantasias, "gostaria de ser uma princesa" etc. Mas falo da função primordial da imaginação, que é a de possibilitar ao indivíduo perguntar-se sobre o que pode ser, livre das amarras do certo e do errado, para que aquilo que é real seja significativo para quem pergunta. O real deixa de ser rígido, preestabelecido para sempre e passa a ser algo que possa olhar de vários ângulos para encontrar a melhor forma de compreendê-lo.
(...) Acredito que a arte tem, de fato, uma função específica nesta fase da vida do indivíduo, em que ele deixou de ser criança, em que se vê como consciência interrogante e ainda não é adulto. Comecei falando da Imaginação porque ela é indissociável da atividade artística, uma não existe sem a outra. A princípio considerei a imaginção como potencialidade humana fundamental para qualquer idade ou atividade; não existe pensamento genuíno sem imaginação. Todos os relatos dos grandes cientistas, como por exemplo Poincaré ou Einstein, falando de seu trabalho, mostram o quanto a imaginação e a intuição estão na base de qualquer investigação científica. Para chegar a uma verdade nova, que contribua para o avanço da ciência, o investigador precisa arriscar, perguntar, transgredir o que já está dado como certo, como logicamente possível.
Se passamos pelo plano dos cientistas, pequena parcelada humanidade, para todos os outros seres humanos, o fenômeno é o mesmo. Um adulto equilibrado, que seja capaz de resolver satisfatoriamente os problemas que a vida lhe apresenta, necessita não apenas do pensamento lógico, mas também da intuição e da imaginação.
Regina Machado nos dá, no texto acima, as razões poéticas e cognitivas da arte na educação do adolescente, e quero lembrar também que não menos importantes são as razões catárticas e emocionais que incluem a saúde mental e o desenvolvimento do processo criador.
Como estas justificativas da arte na educação têm sido exaustivamente defendidas pelos arte-educadores, prefiro me referir às razões pragmáticas da arte na escola para os adolescentes e pré-adolescentes.
A adolescência é o momento de se testar pré-profissionalmente, é quando o jovem começa a se interrogar que carreira seguir ou, mais imediatamente, que vestibular fazer.
Mais de 25% das profissões neste país estão ligadas direta ou indiretamente às artes, e, seu melhor desempenho depende do conhecimento de arte que o indivíduo tem. O contato com a arte é essencial para várias profissões ligadas à propaganda, às editoras, na publicação de livros e revistas, à indústria dos discos e fitas cassetes. Não conheço nenhum bom designer de publicidade que desconheça a produção contemporânea das artes plásticas, como não conheço nenhum bom programador visual de editora que não conheça a produção gráfica da Bauhaus, nem bons profissionais que trabalham em gravadoras que não conheçam música para melhor julgar a qualidade do som que estão gravando.
O que a arte na escola principalmente pretende é formar o conhecedor, fruidor, decodificador da obra de arte. Uma sociedade só é artisticamente desenvolvida quando ao lado de uma produção artística de alta qualidade há também uma alta capacidade de entendimento desta produção pelo público.
É paradoxal que ao mesmo tempo em que a sociedade moderna coloca na hierarquia cultural a arte como uma das mais altas realizações do ser humano, construindo "verdadeiros palácios que chamamos museus para expor os frutos da produção artística e construindo salas de concerto para atingir as mais altas experiências estéticas a que podemos chegar através da música", despreza a arte na escola (Eisner, 1985, p. 5) .
Reconhecemos que a arte representa a apoteose cultural de uma sociedade, mas reservamos um espaço bem pequeno para ela na escola.
Por quê?"
Este texto é de autoria de Ana Mae Barbosa, páginas 27, 28, 29, 30, 31 e 32, em:
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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