"Godard não é um dialético. O que para ele não é o 2 ou o 3, ou sei lá quanto, é o E, a conjunção E. O uso do E em Godard é essencial. É importante, porque todo o nosso pensamento é mais modelado pelo verbo ser, pelo É. A filosofia está entulhada de discussões sobre o juízo de atribuição (o céu é azul) e o juízo de existência (Deus é), suas reduções possíveis ou sua irredutibilidade. Mas trata-se sempre do verbo ser. Mesmo as conjugações são medidas pelo verbo ser, vê-se bem no silogismo. Só mesmo os ingleses e americanos para liberar as conjunções, para refletir sobre as relações. Ocorre que quando se faz juízo de relação um tipo autônomo, percebe-se que ele se mete por toda parte, que penetra e corrompe tudo: o E já não é nem mesmo uma conjunção ou uma relação particular, ele arrasta todas as relações; existem tantas relações quantos E, o E não só desequilibra todas as relações, ele desequilibra o ser, o verbo..., etc. O E, “e... e... e...”, é exatamente a gagueira criadora, o uso estrangeiro da língua, em oposição a seu uso conforme e dominante fundado sobre o verbo ser.
Certamente, o E é a diversidade, a multiplicidade, a destruição das identidades. A porta da fábrica não é a mesma quando eu entro, e depois quando saio dela, ou quando passo em frente, desempregado. A mulher do condenado não é a mesma, antes e depois. Acontece que a diversidade ou a multiplicidade não são absolutamente coleções estéticas (como se diz “um a mais”, “uma mulher a mais”...), nem esquemas dialéticos (como quando se diz “um dá dois que vai dar três”). Pois em todos esses casos subsiste um primado do Uno, portanto do ser, que deve supostamente tornar-se múltiplo. Quando Godard diz que tudo se divide em dois, e que de dia existe a manhã e a tarde, ele não diz que é um ou o outro, nem que um se torna outro, virando dois. Pois a multiplicidade nunca está nos termos, seja qual for seu número, nem no seu conjunto ou na totalidade. A multiplicidade está precisamente no E, que não tem a mesma natureza dos elementos nem dos conjuntos.
Nem elemento nem conjunto o que é o E? Creio que é a força de Godard, a de viver, de pensar e de mostrar o E de uma maneira muito nova, e de fazê-lo operar ativamente. O E não é um nem o outro, é sempre entre os dois, é a fronteira, sempre há uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, mas que não se vê, porque ela é o menos perceptível. E no entanto é sobre essa linha de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam."
Trecho de entrevista com Deleuze cedida à revista Cahiers du Cinéma, publicada sob o título de "Três questões sobre seis vezes dois" em:
DELEUZE, Gilles. Conversações/Gille Deleuze; tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.
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