quarta-feira, 30 de novembro de 2011

[em] Curso: Um lugar onde linhas vibram*

Rafael Silveira [Rafa Éis]
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*Publicado originalmente em: HOFF, Mônica & HELGUERA, Pablo. Pedagogia no campo expandido. Fundação de Artes Visuais do Mercosul: Porto alegre, 2011. Disponível em: <http://www.bienalmercosul.com.br/novo/arquivos/publicacao/pdf/Pedagogia_no_campo_expandido.pdf>
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Convidado a relatar minha experiência com formação de mediadores, logo pensei que não poderia deixar de tratar do que vivenciei no Curso de Formação de Mediadores da 8ª da Bienal de Artes Visuais do Mercosul[1]. Porém, alerto o leitor para o fato de a escrita ser insuficiente para abranger tudo o que passou pelos encontros ocorridos neste curso[2]. Seria impossível citar aqui todas as aulas, atividades, pesquisas, dinâmicas que aconteceram. Trago então um pequeno recorte, com momentos que não aconteceram de forma linear, mas, muitas vezes, se cruzaram: pequenos fragmentos do meio deste curso, que prolongaram seu movimento em mim e em tantas pessoas.
No esforço de tornar este relato claro e próximo do que foi esta experiência, divido o texto em dois momentos. Em um primeiro momento tento converter experiências em palavras, apresentando ao leitor alguns dos programas que compuseram este curso. Já em um segundo momento, me coloco a pensar as implicações, os desvios e os movimentos que estes encontros geraram as grandes sutilezas que percebo não passarem apenas pelos mediadores, mas por todos aqueles que mergulharam no projeto pedagógico desta Bienal. Movimentos que se prolongam no tempo e no espaço, para além do período de mostra.

1. [em] Curso
A distância posta em xeque: o surgimento da nuvem
Neste curso, atravessamos uma série de lugares desconhecidos. Lugares atuais e virtuais. Além dos participantes presenciais das aulas em Porto Alegre, contamos com mediadores de diversas cidades e estados brasileiros que realizaram o curso à distância. Este grupo de mediadores, que ficou conhecido como a nuvem, atuou ativamente as aulas. Eu presencialmente no auditório do ICBNA, portando um laptop, me encontrava com o grupo no chat, emprestando minha voz àqueles que estavam presentes, mas com seus corpos distantes. Através da intensa participação da nuvem, criamos um ponto positivo sobre o fator distância: a conversa silenciosa. Enquanto os palestrantes falavam, produzíamos um diálogo que, sobreposto aos temas das aulas, tornava-se uma espécie de hipertexto coletivo. Surgia um tema com o qual alguém se identificava e logo compartilhava uma experiência; surgia algum termo que alguém desconhecia e logo um colega enviava um link (com imagens, vídeos ou textos) sobre o assunto em questão; surgia uma atividade na aula e logo pensávamos em uma maneira de realizá-la ignorando a distância. A aula crescia com a participação coletiva e silenciosa do grupo.
Atravessando o curso e adentrando o período de mostra, a nuvem faz chover. Mediadores representantes de diversos territórios, culturas e sotaques chegam a Porto Alegre encontrando-se com os mediadores presenciais e compartilhando o mesmo espaço que abriga proposições artísticas que discutem, justamente, noções como: nação (sua construção ou dissolução), conflitos territoriais, identidade, fronteira, migração, paisagem, etc. Além deste belo encontro entre o projeto curatorial Ensaios de Geopoética e a equipe de mediadores de distintos territórios, surgiram verdadeiros intercâmbios culturais, artísticos e pedagógicos. Um acontecimento que enriqueceu, visível e invisivelmente, o Projeto Pedagógico desta edição da Bienal Mercosul.

Caminhando sem mapa e mais de pertinho – Grupos de Discussão e Fletcheriando
Tenho percebido a importância de momentos que fujam ao controle do educador, seja qual for a natureza do espaço de educação. Não falo do tipo de descontrole no qual o educador simplesmente se faz ausente sem a proposição de momentos de aprendizagem, mas de uma ação que visa desfazer-se do controle sobre o processo criativo dos alunos, estimulando-os à criação. Possibilitar uma resposta que fuja ao enunciado proposto desdobrando este em um novo enunciado. Fazer com que os alunos possam nos guiar por caminhos desconhecidos. Na intenção de criarmos estes tipos de momentos na formação dos mediadores, desenvolvemos dois pequenos programas experimentais - que foram inseridos já no decorrer do curso - no cronograma como atividades complementares. Embora concebidos e ministrados pela equipe da modalidade EAD (educação à distância), estes encontros foram desenvolvidos presencialmente na Casa M[3].
Os Grupos de Discussão em Arte foram concebidos especialmente para os alunos sem formação em artes visuais e consistiram em uma série de encontros temáticos com discussões em arte. Iniciávamos com uma introdução ao tema, situando seu contexto, principais artistas e obras para depois colocarmos o debate em prática. Surgiram assim os grupos sobre: Duchamp e Wharhol, Arte Conceitual, Performance, Estética Relacional, Desenho e vídeo a partir de William Kentridge, Site-specific[4] e, finalmente, Arte Contemporânea[5]. Assim, criamos uma breve e lacunar genealogia da arte contemporânea. Genealogia que contribuiu, a partir do olhar de diversas áreas do saber expressas nas diversas áreas de formação dos mediadores, para a compreensão das transformações pelas quais a arte passou, ou a pluralidade de concepções de arte que hoje denominamos contemporânea.
A atividade Fletcheriando foi uma surpresa em todos os sentidos. Me apropriei de um acontecimento impulsionado pelo professor e artista estado-unidense Harrell Fletcher: um singular seminário que desenvolvera com a ajuda de seus alunos na Universidade de Portland[6]. Fletcher nos fala, em um belo relato, o acontecimento que surgiu da tarefa que lançou aos seus alunos: convidar qualquer pessoa que estivesse disposta a compartilhar com público um tema qualquer, de seu próprio interesse, falando dez minutos sobre o assunto. Tal seminário envolveu uma grande multiplicidade de assuntos, apresentados por pessoas de perfis completamente distintos. Segundo Fletcher, os assuntos apresentados pelos convidados incluíram: cuidados com a saúde, trajetos de ônibus, skate, mergulho, como lustrar móveis, redes sociais invisíveis, música na rua, etc[7].
Fiquei pensando: o que aconteceria se realizássemos algo semelhante com os mediadores do curso? Uma atividade na qual cada assunto pudesse nos levar a um lugar desconhecido sem que tivéssemos um mapa com o percurso que faríamos. Assim lançamos a atividade Fletcheriando. A única regra era o tempo. Cada pessoa dispunha de sete minutos para falar sobre qualquer (qualquer mesmo!) tema de interesse, de maneira que não sabíamos qual seria este tema até o momento de cada fala. O curso da atividade foi belíssimo. Dentre os temas elencados: conservação de acervo fotográfico, kung-fu, a história do mangá, pintura, mitos populares, música e caixa de ressonância, literatura e educação, paixão por sandálias, viagem e transformação, performance, etc. Foi uma espécie de reunião sem pauta. Reunião com assuntos de extrema importância, pois cada um dos participantes tinha de escolher um entre uma infinidade de interesses ou experiências para compartilhar. Assim cada assunto, aparentemente ordinário, era tratado com paixão, acompanhado por olhos que sorriam ao escutar algo tão importante para a pessoa que estava contando.
Acredito que outra das contribuições destes programas tenha sido justamente a proposição de um modelo de aula mais intimista e informal. Um modelo de aula que, por contar com um grupo pequeno de participantes, se aproxime do que seria um bate-papo entre amigos. Éramos transportados para um lugar que compunha a subjetividade de cada um, para logo depois sermos levados, por outra voz, a um lugar completamente distante e distinto. Uma viagem sem mapa.

A experiência e o diálogo compondo um lugar de aprendizagem: Estratégias de mediação
Uma vez estava em meu quarto escrevendo no computador, quando abre a porta a minha afilhada de cinco anos de idade e pergunta:
- Rafa, como você enxerga o que está no computador se você está sem óculos? - perguntou ela surpresa ao ver meus óculos sobre a escrivaninha. Em frente ao computador havia uma janela pela qual víamos um campo. Eu disse:
- Vem aqui Luísa. Está vendo pela janela? No meio do campo, lá longe, há algo cor de rosa. Você pode me dizer o que é aquilo? Ela disse:
- É uma flor, uma rosa muito bonita.
- Sem os óculos eu não consigo enxergar aquela flor, apenas uma mancha cor de rosa, mas eu consigo ver estas palavras no computador que estão aqui a minha frente. Eu preciso de óculos para ver o que está longe ou o que está perto?
- O que está longe.
Coloquei os óculos e disse:
- Realmente é uma bela flor!
Sempre fico me perguntando que outros meios além da oralidade poderiam ser convertidos em potências pedagógicas em uma mediação? Na conversa com minha afilhada, é claro que eu poderia simplesmente dizer: tenho miopia, preciso de óculos para ver o que está distante. Mas seria eu e não a Luisa fazendo suas conexões, observando, movimentando-se, pensando o motivo pelo qual eu estranhamente não utilizava óculos para ler (até porque muitas pessoas colocam óculos apenas para ler!). Havia um mistério naquilo!
Além dos encontros no auditório do ICBNA, algumas das aulas do curso foram ministradas em espaços expositivos de instituições cultural. Foi o caso das aulas de Rika Burnham, Pablo Helguera e Amir Parsa. Dentre estas atividades práticas, gostaria de chamar a atenção para uma aula na qual eu estava plenamente mergulhado: o encontro do dia 04 de agosto – Estratégias de Mediação - aula ministrada pelo grupo de arte-educadores, do qual faço parte, Coletivo E.
Em uma aula para mediadores a questão era: como falar aos alunos do curso, da maneira mais clara possível, que não há fórmulas ou receitas a serem seguidas para um trabalho educativo? Como desenvolver uma aula que fuja ao controle estimulando o improviso e a criação dos mediadores? Dentro deste pensamento surgiu a atividade Caixa de Pandora. Uma semana antes dessa aula, lançamos no AVA um fórum pedindo aos alunos que descrevessem uma situação da qual teriam medo ou receio de lidar no trabalho educativo junto ao público. Foram sugeridas situações como: mediação com grupo de pessoas com necessidades específicas, grupo disperso de crianças, mediação para grupo de “especialistas” em arte, grupo escolar que toca nas obras, grupo muito apático, etc. Todas as situações foram colocadas em uma pequena caixa. Nos espaços de exposição do Museu de Arte do Rio Grande do Sul e da Fundação Iberê Camargo nós abrimos a caixa em uma atividade que foi atravessada pelo teatro e com forte referência em Augusto Boal. Do grupo de mediadores chamávamos três ou quatro pessoas para pegar, de maneira aleatória, um pequeno pedaço de papel dobrado e reproduzir cenicamente a situação nele descrita. As pessoas ficavam imóveis após a representação da situação de maneira que alguém do restante do grupo que apenas assistia, deixava o papel de espectador para atuar e interferir na cena propondo uma solução para o “problema” apresentado convertendo este em situação de aprendizagem. Não se tratava de dizer o que era possível ser feito em dada situação, mas de agir naquele momento. Assim para cada situação citada surgiram diferentes formas de solucioná-las. A pergunta “o que fazer?” passou a ser concebida em outra dimensão, pois através deste exercício, que ganhou materialidade a partir da criação e participação dos alunos, iniciamos uma construção coletiva de um repertório de ações. Desfez-se qualquer possibilidade de fórmula para lidar com a multiplicidade que é o público e a produção artística. Nos aproximamos do que eu chamo de metodologia da sensibilidade. A sensibilidade é o que norteia (ou desnorteia) os encontros com as obras de arte, com os grupos escolares e com os mais variados perfis de visitantes. É preciso sensibilidade e envolvimento para perceber e sentir as singularidades e multiplicidades que são os visitantes e as obras em exposição. Cada grupo demanda um caminho diferente, construído sempre de maneira colaborativa e singular.
Estes programas me soaram como exercícios de partilha, de criação ou exercícios de improviso. Um exercício no qual não pré-estabelecemos um lugar de chegada, um ponto a ser atingido, mas a inserção em um movimento o qual não sabíamos para onde iria nos levar.

Começando a perceber: Programa Vivências nas Escolas
A vivência na escola foi ação. Fazer. Experimentar um pouco a mediação e a invenção.[8]
Priscila Borba de Ávila
A gente foi sem muita pretensão de avançar neste trabalho [...] nós estávamos com medo de chegar nas crianças [...] já tinham nos falado que eram problemáticas, que não trabalhavam muito porque, enfim, a coordenação motora delas era difícil, a situação delas era difícil. E elas produziram muito! [...] um rapaz, o Jonathan, fez um trabalho fantástico![9]
Gabriel Bartz
O Programa Vivências nas Escolas[10], realizado ao final do curso, constituiu uma das experiências mais marcantes neste processo de invenção e mergulho no desconhecido. Os alunos foram convidados a desenvolver, em parceria com professores, uma atividade com turmas escolares. Os três encontros na escola (observação, execução da atividade e fechamento, além do planejamento em parceria com os professores) foram suficientes para que os alunos percebessem a importância do trabalho que estavam fazendo e a paixão que isto poderia despertar. Uma série de pré-concepções e mitos sobre o público escolar começaram a cair, dando lugar à experiência do encontro.
O relato de Gabriel Bartz exemplifica boa parte das vivências nas quais muitos mediadores planejaram as atividades sem muitas expectativas, devido a algumas generalizações que circulam sobre o ambiente escolar. Resultado: os mediadores retornavam das escolas com relatos belíssimos. Nas escolas foram realizados coros de queixas realizados por alunos[11], jogos que discutiam as noções de território, atividades sensíveis com grupos de pessoas com singularidades físicas ou cognitivas, enfim, participações entusiasmadas, trocas, produções de momentos de beleza. Presente no relato de diversos mediadores: a transformação de uma pré-concepção do que seria a escola, a experiência direta com os alunos e professores da rede de ensino em um trabalho colaborativo. A percepção de que o curso estava se direcionando para o trabalho efetivo com o público. Estava chegando o momento.

2. Um lugar onde linhas vibram
A linha nômade[12]
Em um texto chamado Políticas[13], Gilles Deleuze e Claire Parnet nos dizem que somos, indivíduos ou grupos, compostos por três espécies de linhas uma linha sedentária, uma linha migrante e outra nômade: a linha sedentária, que seria de segmentaridade dura, diz respeito a família-a profissão; o trabalho-as férias, escola-e depois o exército-e, depois a fábrica-e depois a aposentadoria [...] Segmentos que nos recortam em todos os sentidos.[14] A segunda linha seria de natureza migrante: esta linha diz respeito a segmentos bem mais flexíveis [...] conexões, atrações e repulsões que não coincidem com os segmentos, loucuras secretas, etc. Em suma devires que não tem o mesmo ritmo que nossa história[15]. Esta linha seria o que se passa por baixo dos segmentos duros da primeira linha. Há ainda uma terceira espécie de linha, uma linha nômade: é a linha de fuga e de maior declive [...]. Como se alguma coisa nos levasse, através dos segmentos, mas também através de nossos limiares, em direção de uma destinação desconhecida, não previsível, não preexistente.[16]
Gostaria de chamar a atenção para a linha nômade ou linha de fuga. Esta linha que opera transformações na esfera da micro-política. Esfera na qual nossos pensamentos e ações escapam a determinados modelos e tornam-se singularidades mutáveis produzindo ecos no mundo. Ações que constituem novas formas de subjetividade. Práticas que produzem novas formas de resistência aos modos de subjetivação do capitalismo contemporâneo, os quais reduzem nossa existência a um estado de sobrevida através de uma série de mecanismos de modulação de existência. Em resposta a este poder visivelmente invisível que incide sobre nossas vidas, sobre nossos corpos e sobre nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar,[17]atuaria o que passa nesta linha nômade.

A vibração da linha, o surgimento da música
O que temos que nos esforçar como mediadores é fazer com que as pessoas não saiam iguais, do jeito que entraram.
André Silva de Castro[18]
Aqui atribuirei à linha nômade da qual nos fala Deleuze uma propriedade que vem da música, ou antes, da física: a vibração. Com a possibilidade de vibração, tomemos esta linha como uma corda esticada, como uma corda de um instrumento musical. Um som é produzido quando um corpo vibra, fazendo assim com que o meio a sua volta também vibre. Tendo em vista esta associação entre a produção de som e a linha nômade, pensemos nos ambientes de formação de mediadores e de ações educativas em exposições de arte. Nestes ambientes atravessados pela arte e pela educação nos tornamos música com nossos corpos vibrando e fazendo vibrar outros corpos. Alteramos ritmos de outros corpos e por ritmos de outros corpos somos alterados. Esta terceira linha perece ser uma linha movimentada em muitos que são atravessados pela música que surge entre a arte e a educação.
Neste curso, no conjunto de experiências propiciadas pelas aulas, discussões, vivências, diálogos, pesquisas e especialmente na relação que os mediadores desenvolvem entre si e com o público, senti a vibração desta linha. Senti esta linha vibrar em pessoas que experimentaram e experimentam uma nova configuração de si, sempre heterônoma: jovens artistas que revêem suas produções, educadores que passam a conceber a educação como ação poética ou pessoas de áreas distintas que criam linhas de fuga a fim de permanecer em contato com a arte e/ou com a educação. Em suma, pessoas que operam reviravoltas, muitas vezes irreversíveis, em suas vidas.
Gostaria de trazer do curso uma fala que me marcou profundamente. Linha que vibrou e fez o meu corpo vibrar. Obviamente não seria possível reproduzir com precisão o som que esta fala produziu com o conjunto de elementos que fizeram vibrar o meio. Tento atualizar apenas o tom desta vibração, ou melhor: tento escrever sua partitura:
[...] o que eu vim buscar aqui na Bienal com essa experiência, com o contato com a arte, com a crítica, o de fazer refletir e refletir, era me desemparedar[19]! Hoje eu me demiti. Foi lindo! Meu último dia de emprego, e agora nesta condição de desemparedado... e fazer pensar e fazer eu pensar. Eu espero... bá! Imagina se conseguir fazer pessoas se virarem! Essa é ideia! Espero que dê! [20]
Gaston Santi Kremer
Gaston expressa uma transformação, uma variação rítmica que atravessa a arte a levando a uma forma de pensamento que não se encerra em si. O ato de “desemparedar-se” como a criação de uma linha de fuga em um movimento que parece ser condição para uma vida afirmativa. A sua fala, assim como a de André, anteriormente citada, expressa também não apenas uma vontade de fazer vibrar, mas uma vontade de vibrar em uma coletividade. Uma vontade de ecoar no mundo o tom de suas transformações. Uma vibração que quer se prolongar em variação contínua. Quando me lembro deste curso me vem este relato que me marcou justamente por ativar este sentimento que brotou em mim quando fui mediador na 6ª Bienal do Mercosul. A partir de então pulsante sem cessar.

A musicalidade da transformação
Se musicados e musicantes no curso, na ação educativa junto ao público nos tornamos crianças, nos tornamos pobres, ricos, jovens, idosos, professores, alunos. Nos tornamos pessoas calmas e agitadas, nos tornamos artistas, montadores, obras de arte, curadores, críticos, pessoas cegas ou surdas. Em suma, transitamos. A música nos faz dançar o devir. A diferença atravessa nosso corpo. Nos tornamos quem somos quando diferimos de nós mesmos. Tornar-se quem se é transformar-se, diferir de si mesmo, reinventar-se[21] para dizer o que não poderia ser dito, pensar o que não era possível pensar, sentir o que não poderíamos sentir, escutar o que não poderia ser escutado, saborear o que não teria sabor. Para fazer com que a diferença emane do nosso corpo. Para fazer com que a diferença seja altamente contagiante, e para fazer que nosso corpo não tenha anticorpos contra este tipo de vírus.

Enmeio (para não dizer enfim)
Não se trata de pensar mais uma discussão entre a arte e o campo social ou a tríade educação-arte-política discutindo suas pretensas causas e efeitos, mas de pensar o que passa lá, entre estes três domínios fazendo com que surjam singularidades. Escutar a música, tão presente neste Projeto Pedagógico, que se passa nas formações de mediadores e nas ações educativas em exposições de arte. Como diz um trecho da canção criada pelos mediadores ao final deste curso: trazer o extraordinário para o cotidiano[22]. Fazer surgir e inserir-se nesta musicalidade que acompanha o encontro entre arte, educação e política constitui um lugar nômade por natureza.
Uma vez tocada, esta linha não deixa de vibrar e de deixar-se vibrar. Em uma lógica do contágio os mediadores seguem o curso. Seguem com encontros educativos com o público. Seguem na construção de uma vida estética – uma produção de beleza, uma produção plástica de si. Seguem tornando-se quem são em uma resposta política ao mundo das estabilidades, do pensamento binário e do modelo a ser seguido. Vivem reeducando - desfazendo modelos de pensamento, estimulando singularidades e multiplicidades. Assim estas pessoas compõem um povo habitante de território nômade. Um lugar onde linhas vibram.

Referências bibliográficas:
DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
PELBART, Peter Pál. Por um corpo Vivo: Cartografias biopolíticas. In: LOBOSQUE, Ana Marta (org.). Caderno de Saúde Mental. Seminário Universidade e reforma psiquiátrica: Interrogando a distância. Belo Horizonte: ESP-MG, 2009. V. 2.
ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. Tornar-se quem se é: a vida como exercício de estilo. In: LINS, Daniel (org.). Nietzsche/Deleuze: arte, resistência. Simpósio Internacional de Filosofia. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza: Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, 2007.


[1] Realizado de maio a setembro de 2011, o curso contou com aulas presenciais realizadas no Auditório do Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano (ICBNA) e em espaços expositivos de Instituições Culturais de Porto Alegre. As aulas contaram com a participação de cerca de 300 pessoas, sendo que 50 destas o realizaram à distância através da transmissão simultânea das aulas pela internet. Todos os alunos, presenciais ou não, participavam de um AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem), no qual desenvolvíamos fóruns, disponibilizávamos leituras, atividades, etc.
[2] Utilizo aqui, e no decorrer do texto, a palavra curso não apenas como um programa de aulas e atividades sistematizadas com um fim específico, mas como algo que segue e que se movimenta em direções múltiplas, sem sabermos de antemão para onde este curso nos leva ou para onde levamos este curso. O movimento em sentido não pré-determinado é sua única condição de possibilidade.
[3] Ação ativadora da 8ª Bienal do Mercosul situada na antiga casa que pertenceu à artista e educadora Cristina Balbão. A casa abrigou, além dos programas descritos, cursos de formação de professores, programas com vizinhos, oficinas, performances, sessões de vídeo, exposições de curta duração, obras permanentes e conversas com artistas, curadores e críticos, apresentando-se como uma ação fundamental para o Projeto Pedagógico desta Bienal.
[4] Ministrado por Fernanda Albuquerque, curadora assistente da 8ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul.
[5] O grupo de discussão sobre arte contemporânea foi conduzido pelo artista e professor Rodrigo Nuñez.
[6] FLETCHER, Harrel. Algumas idéias sobre arte e educação. In: BARREIRO, Gabriel Pérez e CAMNITZER, Luis. Educação para a arte/ Arte para a educação. Porto Alegre: Fundação Bienal do Mercosul, 2009.
[7] Idem, p. 49.
[8] Relato escrito por Priscila Borba de Ávila e apresentado na aula do Curso de Formação de Mediadores em Porto Alegre no dia 01 de setembro de 2011. Atuou como mediadora nesta edição da Bienal.
[9] Fala proferida por Gabriel Bartz no Curso de Formação de Mediadores da 8ª Bienal de Artes Visuais em Porto Alegre no dia 01 de setembro de 2011. Atuou como mediador nesta edição da Bienal.
[10] O projeto Vivências nas Escolas surgiu através de proposição da SMED (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre), visando oportunizar aos mediadores um contato próximo com a realidade da rede escolar de ensino do município. Nesta edição do Curso de Formação de Mediadores a vivência pôde ser desenvolvida, em escolas particulares, estaduais, do interior e outros estados, além, é claro, das escolas do município de Porto Alegre.
[11] Em referência ao Coro de Queixas, projeto dos artistas Oliver Kochta e Kalleinen, que compõe a mostra Cadernos de Viagem da 8ª Bienal do Mercosul.
[12] Gostaria de esclarecer ao leitor que efetuo uma redução do estudo que Deleuze faz em torno das linhas, porém quis trazer uma breve introdução ao que o autor entende por micro-política na intenção de tornar mais claro o conceito de linha de fuga ou linha nômade.
[13] DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998, p. 145.
[14] Idem.
[15] Idem, p. 145 e 146.
[16] Idem.
[17] PELBART, Peter Pál. Por um corpo Vivo: Cartografias biopolíticas. In: LOBOSQUE, Ana Marta (org.). Caderno de Saúde Mental. Seminário Universidade e reforma psiquiátrica: Interrogando a distância. Belo Horizonte: ESP-MG, 2009. V. 2. p. 25.
[18] Fala proferida por André Silva de Castro no Curso de Formação de Mediadores da 8ª Bienal de Artes Visuais em Porto Alegre no dia 01 de setembro de 2011. Atuou como mediador nesta edição da Bienal.
[19] Referência ao trabalho Pessoa paga para ser emparedada por 360 hs, de 2000, do artista espanhol Santiago Sierra.
[20] Proferida por Gaston Santi Kremer no Curso de Formação de Mediadores da 8ª Bienal de Artes Visuais em Porto Alegre no dia 01 de setembro de 2011. Atuou como mediador nesta edição da Bienal.
[21] ROCHA, Silvia Pimenta Velloso. Tornar-se quem se é: a vida como exercício de estilo. In: LINS, Daniel (org.). Nietzsche/Deleuze: arte, resistência. Simpósio Internacional de Filosofia. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza: Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, 2007. p. 293.
[22] Criação coletiva de improviso. Curiosamente cantada sobre a melodia de Metamorfose Ambulante de Raul Seixas. A música foi criada por alunos do curso de formação de mediadores e Luis Gulherme Vergara sendo concebida como um coro de esperanças, em referência ao Coro de Queixas, projeto dos artistas Oliver Kochta e Kalleinen presente na mostra Cadernos de Viagem. Talvez seja agora o momento de um coro de experiências.

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